SOFRO PORQUE SOFRO
Quando Buda
tomou para si a missão de compreender o sofrimento, suas causas e possibilidade
de superação e transformação, o fez movido por compaixão e pelo seu próprio
sofrimento. Sim, ele também sofria, talvez até estivesse deprimido. Esta
situação ficou mais intensa depois que ele , contrariando o pai, se aventura
fora das paredes do palácio. Saiu da bolha, como se diz. E o que ele viu?
Sofrimentos inerentes ao próprio ato de estar vivo. Falou que nascer é
sofrimento, morrer é sofrimento, adoecer e envelhecer é sofrimento. Gosto de
interpretar isto como sofrimentos maiores, que a todos alcança pois vamos
envelhecer , adoecer e morrer. O que podemos fazer é desenvolver sabedoria para
lidar com estas passagens.
Ele, há 2600
atrás, disse que nascer é sofrimento. Ele provavelmente não estava falando do
ato de nascer somente. Mas nascer é um ato que dói, tanto para o bebê quanto
para a mãe, que também nasce como mãe. E nascemos a cada momento, a cada
respiração. Durante a minha formação como psicóloga, fui apresentada a somente
um autor que falava do trauma do nascimento, Otto Rank. Buda já havia percebido
isto pois olhou em profundidade e compreendeu o sofrimento e suas origens.
Buda também
identificou outras causas de sofrimento, que eu gosto de classificá-los como sofrimentos menores.
Apegos e aversões, separar-se de quem gostamos e ter que conviver com quem não
desejamos, frustração quando somos contrariados ou criticados, quando não
aceitam as nossas ideias e ideais, sofremos com nossa mente discriminadora que
classifica tudo em conceitos para conseguir entender e lidar com o mundo,
sofremos quando confrontados com a realidade quando gostaríamos de mais prazer,
quando nosso amor não é correspondido, quando não obtemos a aprovação e
reconhecimento do outro, quando trabalhamos tanto e ainda assim não temos o
suficiente para pagar nossas contas...Sofrimentos menores mas não menos
doloridos. Por que falo de sofrimentos menores? Por que provem do ego, que por
sua própria natureza é egoísta e limitado, não consegue enxergar muito além de
si. Fica confinado em sofrimento neurótico, que tem como principal resultado a
limitação da vida, da alegria e do prazer em amar , trabalhar, criar, em ultima instância , de
viver a vida em plenitude.
Buda, que naquela época ainda era Sidarta, provavelmente foi
impactado pelo que presenciou fora dos muros, fora da bolha. Ele vivia com
todos os confortos e privilégios que sua nobre casta poderia oferecer. E o que
viu quando olhou para as castas menos favorecidas? Pobreza, miséria e
sofrimento do povo. Quando decidiu deixar o palácio de forma definitiva, a
primeira coisa que fez foi cortar seus cabelos para que não fosse identificado
com nenhuma casta, já que o penteado e adornos identificam a casta que o
sujeito pertencia. Também deu suas joias e seu cavalo para seu atendente
pessoal. E adentrou a floresta para refletir sobre a existência, o sentido da
vida e da morte, as causas de tanto sofrimento. Inicialmente o compromisso era
consigo mesmo, compreender por que sofria tanto. Assim que compreendeu as
causas de seu sofrimento e a sua superação, estava disponível para auxiliar
outros. Apontar caminhos, como o dedo que aponta para lua.
Tem os sofrimentos legítimos, que são os inerentes à vida,
como citei a pouco. Tem os sofrimentos neuróticos, que são de possível
superação quando estamos dispostos a conhece-los em profundidade e se
comprometer com mudanças e transformação.
Existe um outro tipo de sofrimento que acompanha a história
da humanidade. O sofrimento gerado por
embates de poder e dominação. Sofrimentos oriundos das injustiças sociais,
desigualdades, fomes, guerras, impedimento ao acesso a educação, saúde e
alimentação precária. Danos causados ao meio ambiente, ao genocídios de índios,
a opressão aos negros e demais minorias, o sofrimento dos animais. São causados
pela ignorância, raiva e ambição, raiz de toda espécie de sofrimento, um estado mental que gera sofrimento
individual e coletivo.
Não reconhecer ou negar a existência desse sofrimento,
perpetua o sofrimento e os ciclos de pobreza e opressão. Assim, faz-se
necessário que façamos contato com este nível de sofrimento também, se dispondo
a não passar ao largo, fazendo de conta que não tem nada a ver com isto,
principalmente quando este não o afeta pessoalmente e nos seus interesses. Para
o budismo não basta olhar para a sua
própria dor mas também para a dor do
outro. Nascer para a dor do outro é nascer para si mesmo pois estamos todos
entrelaçados num corpo único, que é a trama da vida.
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