sábado, 12 de janeiro de 2019

SOFRO PORQUE SOFRO

            Quando Buda tomou para si a missão de compreender o sofrimento, suas causas e possibilidade de superação e transformação, o fez movido por compaixão e pelo seu próprio sofrimento. Sim, ele também sofria, talvez até estivesse deprimido. Esta situação ficou mais intensa depois que ele , contrariando o pai, se aventura fora das paredes do palácio. Saiu da bolha, como se diz. E o que ele viu? Sofrimentos inerentes ao próprio ato de estar vivo. Falou que nascer é sofrimento, morrer é sofrimento, adoecer e envelhecer é sofrimento. Gosto de interpretar isto como sofrimentos maiores, que a todos alcança pois vamos envelhecer , adoecer e morrer. O que podemos fazer é desenvolver sabedoria para lidar com estas passagens.
            Ele, há 2600 atrás, disse que nascer é sofrimento. Ele provavelmente não estava falando do ato de nascer somente. Mas nascer é um ato que dói, tanto para o bebê quanto para a mãe, que também nasce como mãe. E nascemos a cada momento, a cada respiração. Durante a minha formação como psicóloga, fui apresentada a somente um autor que falava do trauma do nascimento, Otto Rank. Buda já havia percebido isto pois olhou em profundidade e compreendeu o sofrimento e suas origens.
            Buda também identificou outras causas de sofrimento, que eu gosto de  classificá-los como sofrimentos menores. Apegos e aversões, separar-se de quem gostamos e ter que conviver com quem não desejamos, frustração quando somos contrariados ou criticados, quando não aceitam as nossas ideias e ideais, sofremos com nossa mente discriminadora que classifica tudo em conceitos para conseguir entender e lidar com o mundo, sofremos quando confrontados com a realidade quando gostaríamos de mais prazer, quando nosso amor não é correspondido, quando não obtemos a aprovação e reconhecimento do outro, quando trabalhamos tanto e ainda assim não temos o suficiente para pagar nossas contas...Sofrimentos menores mas não menos doloridos. Por que falo de sofrimentos menores? Por que provem do ego, que por sua própria natureza é egoísta e limitado, não consegue enxergar muito além de si. Fica confinado em sofrimento neurótico, que tem como principal resultado a limitação da vida, da alegria e do prazer em amar ,  trabalhar, criar, em ultima instância , de viver a vida em plenitude.
Buda, que naquela época ainda era Sidarta, provavelmente foi impactado pelo que presenciou fora dos muros, fora da bolha. Ele vivia com todos os confortos e privilégios que sua nobre casta poderia oferecer. E o que viu quando olhou para as castas menos favorecidas? Pobreza, miséria e sofrimento do povo. Quando decidiu deixar o palácio de forma definitiva, a primeira coisa que fez foi cortar seus cabelos para que não fosse identificado com nenhuma casta, já que o penteado e adornos identificam a casta que o sujeito pertencia. Também deu suas joias e seu cavalo para seu atendente pessoal. E adentrou a floresta para refletir sobre a existência, o sentido da vida e da morte, as causas de tanto sofrimento. Inicialmente o compromisso era consigo mesmo, compreender por que sofria tanto. Assim que compreendeu as causas de seu sofrimento e a sua superação, estava disponível para auxiliar outros. Apontar caminhos, como o dedo que aponta para lua.
Tem os sofrimentos legítimos, que são os inerentes à vida, como citei a pouco. Tem os sofrimentos neuróticos, que são de possível superação quando estamos dispostos a conhece-los em profundidade e se comprometer com mudanças e transformação.
Existe um outro tipo de sofrimento que acompanha a história da humanidade. O  sofrimento gerado por embates de poder e dominação. Sofrimentos oriundos das injustiças sociais, desigualdades, fomes, guerras, impedimento ao acesso a educação, saúde e alimentação precária. Danos causados ao meio ambiente, ao genocídios de índios, a opressão aos negros e demais minorias, o sofrimento dos animais. São causados pela ignorância, raiva e ambição, raiz de toda espécie de sofrimento,  um estado mental que gera sofrimento individual e coletivo.

Não reconhecer ou negar a existência desse sofrimento, perpetua o sofrimento e os ciclos de pobreza e opressão. Assim, faz-se necessário que façamos contato com este nível de sofrimento também, se dispondo a não passar ao largo, fazendo de conta que não tem nada a ver com isto, principalmente quando este não o afeta pessoalmente e nos seus interesses. Para o  budismo não basta olhar para a sua própria dor mas também para a  dor do outro. Nascer para a dor do outro é nascer para si mesmo pois estamos todos entrelaçados num corpo único, que é a trama da vida. 

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