terça-feira, 12 de janeiro de 2010

ROHATSU SESSHIN
RETIRO DE ILUMINAÇÃO DE BUDA

1º a 08 de dezembro de 2009.

Este e um breve relato do retiro de 8 dias que participei em São Paulo, na praia de Peruíbe. Uma casa ampla, linda e moderna, 5 suítes, o que permitiu que ficássemos muito bem instalados. Piscina e pátio amplos e belíssimos. O clima dos primeiros 4 dias foi de muito calor, abafado e úmido. A roupa de monja, que não são poucas, colava no corpo. A primeira lição a ser tirada era que ficava claro que não estávamos ali para confraternizar e nem para veranear pois em nenhum momento era cogitada a possibilidade de um mergulho na piscina ou de uma banho de mar.
As consignas estavam claras. O silêncio deveria ser preservado e o sesshin visto como um grande período de zazen, que inicia com a abertura do sesshin e seu final culmina com o encerramento do mesmo. Atentos a nossa postura ao sentar, caminhar e deitar. Postura de Buda. Ficava eu imaginado a postura do Buda e era inevitável usar esse parâmetro para avaliar o meu zazen. Trouxe meu zafu de casca de arroz, forrada de um lado com uma camada de espuma. Achava que meu velho zafu fosse dar conta do meu zazen. Mas não. Pudera, ele ainda me denuncia pois meu nome de darma ainda esta escrito de cabeça para baixo, se eu quiser sentar do lado que tem a espuma. O primeiro e o segundo dia a dor foi suportável o que permitia uma postura conciliadora entre eu e o zafu. Éramos um só. Do 3º dia em diante a dor foi apertando . O que era para ser postura passou a ser descompostura. A dualidade foi se manifestando e já era eu e o zafu, eu e a dor, eu e a parede, eu e a batida do sino, eu e meus pensamentos, eu e minha humilhação. Meu pequeno ego colapsando narcisicamente. O pouco que tinha de nobreza no meu zazen foi sendo substituído por fragilidade, humildade. Senti-me pequena diante do Buda, da Sensei, de outros monjes e monjas, de outros participantes, alguns iniciantes. Apesar de tudo isto, tinha a sensação que havia um conjunto de rashis que me cutucavam me conduzindo para seguir aprofundando, penetrando, retirada, retirante. A cada zazen fui suportando, atravessando. Deslizava sobre o zafu com pequenos movimentos na esperança de dar conta da dor, racionalmente sabendo que não adiantaria de nada. Geralmente só piora. Queria tanto um zazen ereto, quieto, digno de Buda.
No 3º dia do retiro já fui pegando os esquemas e sabia que no intervalo podia dar uma saidinha, dar uma caminhada se quisesse. Saí para fumar um cigarro. Que horror! Discípula de Buda viciada. Parei de fumar por 8 anos e agora ando brincando com coisa séria. Não tenho nem saúde e nem idade pra isto. Mas evitemos julgamentos. Conheço tanta gente amorosa dependente de álcool, cocaína, maconha, cigarro...Aceitar suas insuficiências já é o suficiente. Vi um gatinho. Que saudades da minha Missiê, da minha cadelinha Flor.
A tarde chorei no zazen. A lágrima é a manifestação da dor, do sofrimento, seja ele qual for. Pode ser pelas suas próprias dores, das dores do outro, das dores do mundo. Hoje ventou muito e Sensei disse que vento é transformação, é vida em movimento. Lembrei-me de uma menina que um dia me contou que quando ela ficava aborrecida ou triste no orfanato onde vivia ela se “retirava”, subindo e se escondendo no telhado. Lhe perguntei por que fazia isto e disse: “ Pra ver os ventos do mundo”.
No 4º dia o vento trouxe temperaturas mais amenas. Finalmente me animo a caminhar até o mar já que não tem sol. Estava tudo cinza indicando chuvas . Somente um banhista no mar, fazendo as honras. O calor abafado continuava, parecendo realmente uma estufa.
Hoshin, dono da casa que também é um preceitado, não andou de bermuda em sua própria casa de verão, em respeito a Buda, a tradição.
Nos raros momentos em que eu não estava em zazen na sala do Buda, meu celular tocou, e vendo que era da minha casa, atendi. Era meu filho querendo saber de mim e também para dizer que apareceu um carrapato na cachorra e o que ele deveria fazer. Meus filhos aprenderam a amar os animais – que se estendam a todos os seres.
Dor, tem um tendão que não cede e que me faz lembrar o tempo todo minhas limitações. Será que Buda Shakiamuni teria piedade de mim? Será que Mestre Dogen também?
Freud, o criador da psicanálise, mais para o final de sua obra, quando já enfermo, com um câncer no nariz de tanto fumar charuto, escreveu: “Se não puder seguir andando, que seja manquejando.”
No 5º dia eu já estava furiosa com a dor. Me via em cima do leão como Manjusri. Tentando domá-la. Algumas vezes funcionou, noutras não. Nisso eu já alternava banquinho e zafu. Quando funcionava havia um desdobramento interessante, como se eu tivesse tomado um poderoso remédio para dor e ela cedesse provocando um grande alívio. Parecia que eu havia chegado no portal do samadhi. Que sensação agradável poder fazer zazen com uma dor suportável.
No 6º dia a dor voltou. Já desisti de querer entender. Se é o tendão, se estou fora de forma, se é a idade, nada mais importa, pois assim é. O que ficou pra mim é : atravesse, vá para outra margem, nem se o meu atravessar levar 8 dias, penosamente doloridos.
Nesse dia os monges ( dois senseis) que vieram do Japão recitaram em japonês o Verso Samadhi do Espelho Precioso. Ao ouvi-los me emocionei profundamente – as lágrimas vertiam copiosamente. Só havia ouvido algo tão belo assim de crianças índias das tribos Tupis-guaranis, recitando suas músicas sagradas. Essas crianças e os adultos que as acompanham nas apresentações adentram a postura digna das divindades. A postura, o olhar, é zen.
No 7º dia eu estava energeticamente desvitalizada. Precisei me esforçar para não vacilar. Mesmo assim, quando li a escala de tarefas passou batido que eu estava escalada para ajudar a servir. Como explicar?
Esta seria a ultima noite de zazen, que se estenderia das 20h00 as 24h15, culminado com a cerimônia de encerramento do sesshin. Das 21h30 em diante eu não tinha condições físicas e nem emocionais para acompanhar. Permaneci na cadeira, caminhei, deitei um pouco, mas não poderia dormir pois não acordaria e eu não queria perder a cerimônia.
E assim fui atravessando de uma margem a outra.
Mas são muitas travessias. O retorno de Peruíbe para São Paulo foi complicado por causa das chuvas. O retorno de avião para Porto Alegre foi assustador. Inicialmente, a decolagem foi abortada por problemas técnicos quando o avião já ia em toda velocidade. Em seguida havia um barulho na turbina esquerda que mais parecia uma lambreta velha. Para completar, o ar que estava mínimo parou de vez e todo mundo começou a passar mal. Pensei que poderia ser a minha hora. Como manter a postura numa hora dessa? Como manter a nobreza e dignidade quando a dona morte se apresenta?
Mas deu tudo certo e cheguei em Porto Alegre. Minha filha me aguardava. Ela tem a capacidade de me arremessar no sansara , não me deixando esquecer que ele existe. Minha primeira reação foi tentar desviar e abstrair, mas com reatividade. Ela percebe e comenta que “eu” que vim de um retiro zen. Ou seja, do seu jeito ela estava me pedindo para aceitá-la incondicionalmente, convocando não somente a mãe, mas também a monja, a mulher madura e aquela que busca sabedoria.
Neste momento pela primeira vez fez sentido para mim a não deferenciação entre o nirvana e o sansara, entre o mundano e o sagrado. . Compreendi que é possível retornar para o sansara e ao mesmo tempo retornar e se abrigar no Buda.





Monja KokaI
Dezembro de 2009

2 comentários:

  1. Lindo, lindo demais o teu texto Kokai. Senti um pouco as tuas dores enquanto lia. Mas senti muito mais a tua determinação em estar conectada com tudo e todos.
    Gassho

    ResponderExcluir